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sexta-feira, 18 de abril de 2014

O DIREITO DE SER DIFERENTE

Objeção de Consciência, Desobediência Civil e Ação Direta

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Por Dr. phil. Sônia T. Felipe
​​Na filosofia política temos três conceitos ligados à luta pela justiça baseada na liberdade, na iguald​​ade e na busca da própria felicidade: o da objeção de consciência, o da desobediência civil e o da ação direta.

Nessa ordem considero o peso e o alcance de cada uma. A objeção de consciência é um direito individual, assegurado pela Constituição para resguardar a liberdade de expressão quando os conceitos ou concepções de uma cidadã ou de um cidadão estão configurados de modo que chocam com os conceitos gerais considerados comuns a todas as pessoas, quando de fato não o são.​​
Para dar um exemplo: veganos ou defensores dos direitos animais podem entrar com a objeção de consciência para não participarem das aulas de vivissecção em seus cursos universitários. Se a pessoa é de uma religião que não admite que se exerça qualquer ofício ou atividade não religiosa aos sábados, a pessoa pode alegar objeção de consciência e recusar-se a prestar aquele serviço nesse dia. Se uma pessoa pertence a uma religião que proíbe tocar em armas, ela pode alegar objeção de consciência​ e recusar-se a prestar o serviço militar. Cada caso é analisado com base nos direitos e deveres que a Constituição impõe e isso não é nada fácil de resolver, mas acaba sendo resolvido.

No caso da desobediência civil, a pessoa se recusa a fazer algo que todas as demais fazem, não para obter um benefício para si mesma, como no caso da objeção de consciência, mas para conscientizar o Estado e a sociedade civil que uma determinada prática institucional, por exemplo, o desmatamento de uma área de preservação para cultivo de grãos e cereais para sustentar animais que serão mortos para consumo humano, não combina com o restante dos princípios apregoados pela Constituição democrática, de defesa tanto dos animais quanto dos ecossistemas naturais. A desobediência civil é uma recusa de cumprir uma lei para com isso chamar a atenção da sociedade para um fato ou uma prática institucional que fere os princípios éticos, políticos ou democráticos do país no qual a pessoa que “desobedece civilmente” reside. A desobediência civil tem força quando o desobediente é uma pessoa respeitada na sociedade, com autoridade moral para chamar a solidariedade da sociedade para junto de si enquanto enfrenta a ira do Estado (podendo chegar a ser presa ou preso) por descumprir a lei. Mas vejam: o descumprimento da lei não pode trazer para a pessoa qualquer benefício, senão o peso moral de seu ato perde força junto à sociedade e frente à justiça

O primeiro caso de desobediência civil conhecido e registrado na história democrática foi o de Henry David Thoureau, autor do livro Walden, um cidadão norte-americano que se recusou a pagar os impostos anuais quando o coletor passou em sua casa para os recolher, porque decidiu que não financiaria mais com seus impostos o sistema escravagista norte-americano, porque a Constituição declarava que todos os homens eram iguais, entretanto, tratava os negros como não sendo da espécie humana. A pena para quem não pagasse impostos era a privação de liberdade. Thoureau se recusou a pagar e explicou ao coletor a razão.​ O coletor ficou na maior saia justa, porque Thoureau era um homem conhecidíssimo, amadíssimo e tinha amigos muito importantes. Como levar esse homem digno para a cadeia? Se não fizesse isso, ele, pobre coletor, perderia o emprego. Então, ordenou a prisão do escritor e filósofo e assim foi feito. Na noite em que passou na cadeia, Thoreau redigiu o texto “Desobedecendo”, traduzido no Brasil por Fernando Gabeira na década de 80. É o texto mais antigo, escrito no século XIX, sobre as razões que podem e devem levar um homem de bem a desobedecer a uma lei para chamar a atenção, não sobre si, nem para ganhar nada com isso, para alguma questão de ordem moral ou política que o Estado está acobertando, ou da qual ele se beneficia, contrariamente ao que ele mesmo reza em sua carta máxima: a Constituição.

A terceira figura é a da ação direta. Em uma democracia, supõe-se, nenhuma prática institucional deve violar os princípios democráticos assentados como pilares do regime político para reger as relações entre todos os cidadãos e cidadãs. Vou definir o que é uma prática institucional, para que o raciocínio possa ser bem acompanhado: é toda prática costumeira, organizada, prevista, conhecida e ordenada por leis com aprovação da sociedade e do Estado. Assim, a ação direta é uma intervenção para chamar a atenção da sociedade civil sobre esses costumes, mesmo que eles estejam amparados por lei. Para classificar uma ação como direta é preciso que a prática que ela visa abolir seja conhecida e aprovada por todos, não exatamente porque a prática seja algo bom, mas porque todo mundo ainda está convencido de que ela não tem mal nenhum ou mesmo é necessária (um mal necessário).

Mas, bem o sabemos, à medida que as pessoas se tornam mais e mais conscientes da qualidade e teor dos princípios que elas devem seguir para terem seus direitos guardados pelo Estado, elas também se dão conta de que muito do que é praticado no dia-a-dia contraria os princípios que essa sociedade apregoa como sendo seus pilares. Em outras palavras, ela se dá conta de que muita coisa, moralmente falando, é só da boca para fora, como era a igualdade norte-americana de todos os homens que deixava os homens negros de fora.

Se a igualdade é o princípio básico constitucional, tratar as pessoas desigualmente, por conta de seu sistema reprodutor, da quantidade de melanina na pele, da origem territorial, da religião, da sua expressão sexual, da sua renda familiar etc., são práticas preconceituosas que geram a distribuição injusta dos bens materiais e imateriais patrimônio e matrimônio dessa sociedade (é, porque não pertencem só aos homens, pertencem também às mulheres, ou não?).

Se a não-violência é um princípio moral que deve reger as relações dos humanos com o restante dos seres sencientes, então qualquer gesto que derrote a integridade, a saúde, a liberdade de ir e vir e a vida mesma de qualquer dos seres em apreço, humanos ou não-humanos, fere de morte a base da paz social.

Para os defensores dos direitos dos animais, o princípio da igualdade do direito à vida, à liberdade para expressar seu espírito de acordo com a singularidade da espécie animal na qual nasce e o não aprisionamento ou privação de quaisquer meios necessários a essa expressão são direitos de todos os animais, não apenas dos humanos.

Platão e Rousseau são dois filósofos políticos que reconheceram que uma república genuína e uma democracia genuína admitiriam os animais em igualdade de condições para viverem suas vidas compartilhando-as com os humanos, sem serem submetidos a quaisquer práticas institucionais que favoreçam os interesses dos humanos em detrimento de seus interesses.

Mas, e quando o resto da sociedade sequer parou para pensar que a questão dos animais não é mais uma questão confinada aos porões, não é mais uma questão confinada às baias, aos galpões de criação, aos laboratórios de experimentação, às jaulas dos circos e zoos, das fazendas de criação de peles, e sim uma questão ética à qual todos os humanos devem se antenar? É justo ou legítimo intervir diretamente para libertar os animais do confinamento ao qual estão condenados?

Se as pessoas não se interessam em defender os interesses dos outros, considerando que é suficiente que seus interesses pessoais não sejam pisados, os animais não-humanos continuam lá, sofrendo os terrores da vida que não se destina nunca a viver mas a morrer em dor e agonia. No entender de John Rawls, filósofo político que tratou da questão no livro Uma teoria da justiça, a desobediência civil não visa obter ganhos para si, e sim para o grupo que sofre a discriminação e a injustiça. Peter Singer também segue essa posição no livro Ética Prática.

A segunda exigência de uma ação desobediente genuína, é o ato desobediente servir para mostrar ao resto da sociedade, à justiça, aos políticos adormecidos no confinamento de seus gabinetes e redutos eleitorais, que está havendo uma contradição entre aquela prática institucionalizada e os princípios constitucionais em vigor, e que isso precisa ser corrigido. A desobediência civil deve vir acompanhada de outros atos de esclarecimento e educação, todos assegurados como direito pela constituição, atos esses que devem visar dar visibilidade à injustiça em questão e mobilizar a sociedade para o debate e a revisão de tal prática discriminatória e injusta até que ela seja abolida. Pode levar décadas até as desobediências surtirem o efeito desejado. A ação direta é uma espécie de boicote ativo que visa a abolição de uma prática, mas sem achar que a prática será abolida imediatamente, pois só é alvo de tais ações a prática verdadeiramente institucionalizada, quer dizer, a que tem raízes espalhadas por toda a cultura de consumo daquela sociedade.

O boicote passivo é o ato de recusar-se a agir quando sua ação resulta em algo do qual discordamos. Por exemplo, discordo de matar animais para servir de comida a humanos ou a outros animais. Não como nem compro carnes. Discordo de manter animais confinados a mim, pois isso implica em ter que matar animais, ou pagar para que outros os matem para dar de comer aos meus. Não possuo animal de estimação. Eles estão à volta da minha casa por gosto e em plena liberdade: pássaros, gambás, lagartos, ratos e gatos. Não concordo que animais tenham que ser escalpelados vivos. Não compro roupas que tenham pedações de peles de animais. Não concordo que coelhos e beagles sejam torturados com testes em produtos cosméticos. Não compro maquiagem nem cremes. Não concordo que animais aquáticos sejam aprisionados em aquários ou em parques para diversão de humanos. Não visito zoos nem aquários. Quando quero ver animais, olhos os filmes da BBC ou do Planeta Terra. E assim por diante. O boicote é a atitude de recusa de consumir animais, pois isso lhes custa a liberdade e encurta a vida, duas coisas que não desejo para mim. Mas o boicote pouco mexe com o sistema que institucionaliza tais práticas, a menos que ele seja uma ação coletiva. Daí, sim, tem uma força descomunal, porque parando o consumo, para a matança. A Bélgica acaba de triturar uma tonelada e meia de marfim, pondo fim ao direito de se comprar qualquer peça esculpida com a presa do elefante assassinato para extração dela. A forma direta e correta de acabar com a matança dos elefantes para suprir desejos triviais humanos, como ter um piano com teclas de marfim, um trono real de marfim, estátuas religiosas de marfim, joias de marfim etc.

A ação direta, por outro lado, é um ato de intervenção em uma determinada prática, resultando na impossibilidade de ela continuar a existir no momento seguinte no local onde a intervenção aconteceu. E, eis o nó da questão! Isso não leva à interrupção da prática em locais similares.
Defensores dos animais entram em um laboratório e resgatam de lá os animais usados em testes: ação direta de salvamento daqueles indivíduos. Defensores dos animais resgatam animais transportados para os abatedouros e os levam para santuários: ação direta de salvamento daqueles indivíduos. O resultado imediato dessas intervenções, obviamente, não é o fim dessas práticas em todos os lugares onde ela ocorre. O objetivo pode ser esse, mas o que resulta dessa ação direta ainda não o alcança.
O resultado imediato da ação direta é o salvamento daquele grupo de animais, a repercussão na mídia, o debate sobre o assunto sendo finalmente levantado, o ato sendo criticado ou aprovado, os argumentos sendo arrebanhados para sustentar a prática ou para sustentar sua abolição. E o que fica é mesmo um marco que provoca a discussão do assunto. Daquele momento em diante o modo de conceber os direitos dos animais sofre mudanças. Isso é o que a ação direta deve almejar.

Quem antes nunca havia pensado no assunto, agora pensa. Ou critica, ou apoia. Esse é o resultado mais palpável da ação direta. Se a grande imprensa se mostra indiferente a determinado assunto, se é imprensa chapa branca, só divulgando a mesmice que não interessa a não ser a quem obtém lucros com a inércia moral da sociedade de consumo, uma ação direta dá uma chacoalhada na desatenção jornalística para com os problemas éticos do nosso tempo. E se a ação direta não carreia violência, pouco a pouco o tema que ela põe na pauta de discussões passa a ser tratado. Então, sim, se pode começar a construir um novo modo de ver aquele conceito, e a prática institucional terá que ser revista.

Mas, e quanto aos riscos? Esses, sim, o ativista que escolhe a ação direta como estratégia militante tem a responsabilidade de calcular, porque o ato dele terá consequências não apenas morais, mas também desdobramentos políticos e repercussão social, além de riscos materiais. É nesse espelho, da avaliação dos impactos morais e dos riscos que as ações diretas precisam ser ordenadas. Caso contrário, serão apenas ações de vândalos, como a grande imprensa, na pressa habitual e atendendo às ordens dos patrões, seus anunciadores, costuma tachar os ativistas diretos, até prova em contrário.



perfil soniaSônia T. Felipe | felipe@cfh.ufsc.br
Sônia T. Felipe, doutora em Teoria Política e Filosofia Moral pela Universidade de Konstanz, Alemanha (1991), fundadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Violência (UFSC, 1993); voluntária do Centro de Direitos Humanos da Grande Florianópolis (1998-2001); pós-doutorado em Bioética - Ética Animal - Univ. de Lisboa (2001-2002). Autora dos livros, Por uma questão de princípios: alcance e limites da ética de Peter Singer em defesa dos animais (Boiteux, 2003); Ética e experimentação animal: fundamentos abolicionistas (Edufsc, 2006); Galactolatria: mau deleite (Ecoânima, 2012); Passaporte para o Mundo dos Leites Veganos (Ecoânima, 2012); Colaboradora nas coletâneas, Direito à reprodução e à sexualidade: uma questão de ética e justiça (Lumen & Juris, 2010); Visão abolicionista: Ética e Direitos Animais (ANDA, 2010); A dignidade da vida e os direitos fundamentais para além dos humanos (Fórum, 2008); Instrumento animal (Canal 6, 2008); O utilitarismo em foco (Edufsc, 2008); Éticas e políticas ambientais (Lisboa, 2004); Tendências da ética contemporânea (Vozes, 2000).
Cofundadora da Sociedade Vegana (no Brasil); colunista da ANDA (Questão de Ética) www.anda.jor.br; publica no Olhar Animal (www.pensataanimal.net); Editou os volumes temáticos da Revista ETHIC@,www.cfh.ufsc.br/ethic@ (Special Issues) dedicados à ética animal, à ética ambiental, às éticas biocêntricas e à comunidade moral. Coordena o projeto: Ecoanimalismo feminista, contribuições para a superação da discriminação e violência (UFSC, 2008-2014). Foi professora, pesquisadora e orientadora do Programa Interdisciplinar de Doutorado em Ciências Humanas e do Curso de Pós-graduação em Filosofia (UFSC, 1979-2008). É terapeuta Ayurvédica, direcionando seus estudos para a dieta vegana.
Link para C. Lattes:  http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4781199P4

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